Por trás de toda expedição científica há inúmeras perguntas sem respostas, como por exemplo, haverá vida em Marte?
"Não sabemos a distância que temos que percorrer, e temos um rio desconhecido a explorar. Quais serão as quedas? Não sabemos. Quais as pedras que bloquearão o caminho? Não temos ideia. Quais as muralhas que se erguerão sobre o rio? Também não sabemos. Ah, bom! podemos imaginar muitas coisas."- John Wesley Powell
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John Wesley Powell é um dos meus heróis. Exatamente 143 anos antes de nossa sonda Curiosity aterrissar em Marte (5 de agosto de 2012), o veterano da Guerra Civil, com um braço só, liderou uma missão com nove homens que, em quatro canoas de madeira, se arriscaram pelo indomável rio Colorado e pelo desconhecido Grand Canyon.
Tenho pensado muito nele ultimamente, principalmente porque parece haver algumas semelhanças entre o que ocorreu na desolação magnífica do norte do deserto do Arizona há mais de um século e o que está acontecendo em Marte nos dias de hoje: as colinas e planaltos em múltiplas tonalidades e a sequência incandescente de faixas coloridas que tornam aquela maravilha natural ainda mais grandiosa e que também podem ser encontradas a 160 milhões de quilômetros daqui.
A expedição geográfica de Powell foi um fator de mudança no entendimento da história geológica não só da região ou do continente, mas do planeta inteiro. Com a missão Curiosity da NASA, nós não só redefinimos o que achávamos que Marte era como o descobrimos ser muito mais receptivo a vida do que supúnhamos. Nós também estamos explorando um fator de mudança em potencial que se parece muito com o do Grand Canyon.
Hoje todos nós sabemos muito bem como é o desfiladeiro, mas, naquela época, Powell e sua equipe tinham apenas uma vaga ideia do que encontrariam pela frente. Trezentos anos antes dele, os conquistadores espanhóis foram os primeiros europeus a visitar a região. Três deles inclusive conseguiram descer um terço do perímetro na parte sul até que a sede e o senso de autopreservação levassem a melhor. Outros vieram depois e se maravilharam com toda aquela majestade, mas, antes de 1869, ninguém com tino científico olhou para cima lá da base para se perguntar o que era tudo aquilo.
Powell não era só um cientista excepcional, era gente boa de verdade. Durante a Batalha de Shiloh, na Guerra de Secessão, perdeu parte do braço direito para um tiro de espingarda. Porém, sendo leal à causa, se recuperou, participou de várias outras campanhas e ainda fez amizade com Ulysses S. Grant, o comandante dos exércitos da União.
Fascinado por pedras, dizem que "o Major" (como gostava de ser chamado) fez um estudo dos fósseis que encontrou nas trincheiras durante a Batalha de Vicksburg. Depois da guerra, tornou-se professor de Ciências Naturais na Universidade Wesleyan, em Illinois, mas deixou o cargo quando a ânsia de explorar o Oeste do país passou a consumi-lo. (Uma história curiosa, que também aconteceu depois da guerra: Powell fez amizade com um oficial confederado que tinha perdido o braço esquerdo em Shiloh. Nos anos seguintes, cada vez que um deles comprava um par de luvas, mandava a que não precisava para o outro.)
É claro que como o Major não tinha parte de um braço, descer corredeiras ou fazer escalada estavam fora de cogitação. Mesmo com toda a sua bagagem cultural e experiência de campo, ele não tinha a mínima ideia de onde estava se metendo - mas sabia o que buscava. É o tipo de intuição científica que se desenvolve depois de muitos anos. E sabia também que eram só conjecturas. E foi por isso que foi em frente.
Enfrentando a correnteza do rio desconhecido sempre que possível e carregando nas costas os barcos pesados de carvalho e pinho quando impossível (o que acontecia com frequência), a primeira expedição científica ao Grand Canyon percorreu as alcovas, rochedos e anfiteatros do desfiladeiro com o objetivo de mapeá-lo e documentar sua história geológica.
A missão de Powell reescreveu os dados da história do nosso planeta. Equipados com barômetros, cronômetros, termômetros, bússolas, cadernos e lápis, o Major e sua equipe começaram a preencher os vazios dos registros históricos da Terra. Entre suas descobertas está a sucessão de grossas camadas de rochas que ajudou a transformar a própria constituição do Grand Canyon num dos arquivos de histórico geológico mais ricos do mundo. Além disso, gerou na mente de Powell a ideia radical de que o próprio desfiladeiro foi formado conforme o rio Colorado foi abrindo caminho lentamente - ao longo de milhões de anos - num paredão de pedra. Ainda mais improvável era a questão: se o rio levou tanto tempo para abrir caminho através de uma pilha de camadas rochosas de menos de dois mil metros de altura, então qual a idade dessas camadas?
Pensamentos como esse estavam entre os mais profundos do século XIX, quando o mundo lutava para aceitar a noção de "tempo profundo", da grande antiguidade da Terra e do conceito de que alguns processos geológicos seguem a marcha inexorável do tempo e não eventos repentinos e cataclísmicos como terremotos e enchentes. Com o devido tempo, seguindo a lógica, a água consegue escavar a rocha mais sólida e as montanhas se reduzem a planícies. Esse "gradualismo" é que corrobora o pensamento geológico moderno.
As duas expedições de Powell (ele enfrentaria a força do Colorado novamente em 1871) brindaram o público com histórias fascinantes sobre o Oeste norte-americano e desafiou os cânones científicos da época. Agora estamos prestes a fazer o mesmo em Marte, com a grande diferença que nossa equipe é composta não só de nove homens, mas 472 homens e mulheres representando treze países.
Desde a chegada da Curiosity, há um ano e quatro meses, já alcançamos os principais objetivos da nossa missão principal. Depois de apenas oito meses, a sonda descobriu que por baixo das suas seis rodas de alumínio estavam os restos do leito de um antigo lago de água fresca, do tipo que poderia ter abrigado microorganismos simples - com baixo teor de sal, livre de ácidos fortes e cheia de nutrientes. Um ser humano poderia até beber um copo dela, mesmo que engarrafá-la para revender não fosse uma boa ideia.
A sonda e seu laboratório de espectrômetros, lasers, difratômetro de raio-X, detector de radiação, gerador de nêutrons e 17 câmeras, e até sua própria estação meteorológica, foram fundo nos registros ambientais dos primórdios da história marciana. Dados da Curiosity mostram que, se um dia os micróbios tivessem se originado em Marte, teriam disponíveis enxofre, nitrogênio, hidrogênio, oxigênio, fósforo e carbono, ou seja, alguns dos principais ingredientes para garantir a presença de vida. Esses organismos primitivos poderiam ter se alimentado da energia química armazenada nas rochas e minerais exatamente como a lâmpada incandescente que se acende graças aos produtos químicos armazenados numa bateria de célula seca. É tudo uma questão do estado de oxidação mineral, do fluxo de elétrons através das rochas e dos micróbios e da quimiolitoautotrofia (para quem quiser se aprofundar).
Alguns micróbios aqui na Terra vivem do consumo desse exato tipo de fonte de energia. Eles "comem" pedra. Será que o mesmo aconteceu na antiguidade de Marte? Quando você junta tudo a coisa fica mais interessante ainda e nos deixa mais próximos de descobrir se a vida já se originou em outro lugar que não a Terra.
Enquanto você lê este artigo, a Curiosity está atravessando alguma planície para se aproximar cada vez mais da base do Monte Sharp, uma montanha gigantesca formada por uma pilha de camadas de rocha cuja altura é três vezes maior que a profundidade do Grand Canyon. É claro que cobrindo cerca de meio campo de futebol por dia significa que vai demorar vários meses para chegar lá, mas tudo bem. As estradas não são asfaltadas e o mecânico mais próximo fica a milhões de quilômetros de distância. Queremos chegar com tudo em ordem, e assim será. A cada dia que passa a sonda envia imagens cada vez maiores do sopé da montanha em seu visor e com isso a sensação de que vamos desvendar algo importante só faz crescer. Entretanto, conforme nos aproximamos, fica difícil não olharmos um para o outro, cercados de computadores e quadros brancos, e nos perguntarmos: "Será esse o fim da linha?"
Por enquanto, só podemos imaginar o potencial do Monte Sharp. Como o Grand Canyon, ele nos mostra as páginas de um livro de história antiga. Suas camadas são cápsulas dos primórdios do tempo e a nossa Curiosity tem o poder para de decifrar seu significado. Não sabemos ainda que histórias tem para nos contar, mas esperamos que sejam interessantes.
Talvez se descubra que há bilhões de anos havia um lago onde hoje fica o Monte Sharp, ou que havia uma fonte jorrando numa de suas encostas. Talvez haja evidências de que as camadas de rochas estejam expostas não porque um rio abriu caminho por elas milhões de anos atrás, mas sim por causa do efeito de bilhões de anos de vento, efeito máximo do gradualismo.
Porém, também temos que nos preparar para ler um epitáfio desolador de um planeta lutando para lidar com o declínio ambiental irreversível. Bilhões de anos atrás, Marte passou por uma mudança monumental em seu ambiente ao perder grande parte da água para o espaço. Imagine como sendo a "Grande Seca". Hoje, o Planeta Vermelho é mais ressecado que um osso e não sabemos por que essa deterioração climática se deu numa época em que a vida vicejava na Terra.
Para terminar, eu sei a pergunta que você quer fazer, houve ou há vida lá? Como cientista chefe da missão Curiosity, tenho que responder essa questão o tempo todo. E a resposta, simples e agonizante ao mesmo tempo, é: não dá para dizer... e é mais que provável que a nossa sonda também não possa esclarecer essa dúvida. Ela não foi projetada para isso. Nossa missão é examinar evidências de condições ambientais favoráveis a vida, como esses meio ambientes mudaram e se eram adequados para preservar a evidência da vida que porventura tenha existido ali.
Não se preocupe, nossa curiosidade vai levar a melhor e vamos acabar descobrindo. Em 2020, a Nasa planeja lançar uma sonda que vai coletar amostras, talvez de lugares semelhantes àqueles que a Curiosity explorou, que possam ser trazidas para a Terra, onde poderemos procurar por sinais de vida em Marte. É o próximo passo lógico. O que essa nova sonda vai descobrir, como Powell no Grand Canyon, nós não sabemos. Podemos só especular.
Só posso lhe dizer que mal posso esperar.
(John Grotzinger é Professor Fletcher Jones de Geologia do Instituto de Tecnologia da Califórnia e cientista do projeto da sonda Mars Science Laboratory.)
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Fonte: http://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/redacao/2013/12/30/no-desconhecido-sinais-de-agua-em-marte.htm
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